Aline Caixeta Rodrigues

23 de abr de 20215 min

Pobre não lê?

Todos os anos, desde que comecei o Recanto da Prosa, fico me perguntando o que postar no Dia Mundial do Livro e dos Direitos do Autor. Curiosidades sobre a data, memórias afetivas, explanações sobre como funcionam os direitos autorais e por aí vai. Mas neste ano não tive um instante de dúvida sobre o tema do qual precisamos falar: a taxação dos livros no Brasil.

Segundo o governo federal, como as "famílias com renda de até dois salários mínimos não consomem livros não didáticos" e "a maior parte desses livros é consumido pelas famílias com renda superior a dez salários mínimos", então não há problema em taxá-los. A lógica é a seguinte: já que o pobre não lê mesmo, não vai fazer diferença; o pobre vai continuar não lendo e o rico vai continuar comprando livros.

Num certo sentido – não me atirem pedras – o governo tem razão. Mas a questão (e essa é a crueldade da coisa) é que há uma inversão de causa e consequência aqui. Se o pobre não lê (e essa é uma afirmação da qual não estou lá 100% convicta), não é por falta de interesse ou capacidade intelectual, mas por ausência de estímulo, acesso e condições de leitura. Taxar o preço de capa em 12% terá como inevitáveis efeitos colaterais o repasse desse aumento ao consumidor final – e, por consequência, a ampliação do abismo existente entre os livros e os cidadãos das classes C, D e E. É óbvio. Um livro mais caro pesa incomparavelmente mais no bolso do “dois salários mínimos” do que no bolso do “dez salários mínimos”. Com mil e poucos reais para pagar as contas de alimentação, aluguel, energia, saúde e outros custos básicos no fim do mês, eu também cortaria os livros da lista. Não adianta romantizar, papel não enche barriga.

“Ah, mas o Paulo Guedes falou que vai distribuir livros gratuitos para os pobres”. Ótimo. Seria um sonho se não fosse conversa pra boi dormir. Que livros? Quem vai selecioná-los? Com que verba será feita a compra e a distribuição? Por que canais? Não há nenhuma proposta concreta de um plano para se fazer isso; e sem um planejamento estratégico, será que alguém realmente acredita na existência de um projeto nacional de distribuição de livros para a população de baixa renda? Outra coisa: não vamos nos esquecer de que a verba arrecadada pela taxação de 12% é absolutamente irrisória a nível de Estado; os ganhos não compensam os prejuízos.

De minha parte, eu poderia continuar este texto com números, dados e dezenas de argumentos, mas há gente muito mais capacitada do que eu fazendo isso por aí, com bases jurídicas e econômicas; então prefiro seguir por um outro caminho e falar da minha experiência enquanto profissional das Letras. Durante três anos, trabalhei em duas instituições sem fins lucrativos: uma ONG que promovia o ensino de arte para crianças e adolescentes da periferia; e um abrigo para menores em situação de vulnerabilidade social. Em ambas, ministrei oficinas de leitura e escrita literárias, e sabe o que eu vi? As crianças chegavam, sim, sem o menor interesse pelos livros. Claro. Como alguém vai se interessar, magicamente, por algo que não conhece?

Na ONG, havia também oficinas de música, teatro e cinema – e perdi as contas de quantos alunos chegavam à primeira aula terrivelmente frustrados porque queriam fazer cinema (onde teriam livre acesso a celulares para gravar curtas); ou música e teatro, com todos aqueles instrumentos, fantasias, maquiagem, subir aos palcos nos eventos de fim de ano e outros atrativos. Não me entendam mal, nunca tive nenhuma rixa besta com meus colegas educadores; éramos todos muito colaborativos e apaixonados por qualquer manifestação artística. Mas vejam só, na minha sala, ao invés de cenários, instrumentos musicais, microfones, araras de roupas e acessórios, havia uma pequeníssima estante de livros e eu. Sejamos sinceros, era mesmo a sala menos atrativa. E quem ficava na fila de espera das outras turmas podia ou ir embora ou ir pra literatura. O resultado era que em todo começo de semestre, ao menos metade da turma aparecia emburrada no primeiro dia; com a carta na manga, pronta pra jogar na minha cara diante de qualquer mínima reprimenda: “Eu nem queria estar aqui”.

Para os céticos que não acreditam em milagres, saibam que sim, eu tive paciência. E nesses três anos de trabalho, obtive provas concretas daquilo no que sempre acreditei: a literatura muda as pessoas. Muito. A níveis que nossa vã filosofia não consegue compreender. Eu vi crianças altistas contando histórias diante de uma sala cheia. Vi os “garotos-problema” das escolas vidrados em Lygia Fagundes Telles, Edgar Allan Poe, Guimarães Rosa, Chico Buarque, Clarice Lispector. Vi crianças que nunca haviam frequentado um sarau na vida reconhecerem, de ouvido, a autoria de Gonçalves Dias numa gravação. Vi meninos e meninas que se odiavam sentarem-se juntos para criar uma narrativa conjunta. Vi um órfão de 14 anos escrevendo, sem que eu pedisse, resenhas quinzenais dos livros que pegava emprestados comigo – para ao fim de um ano me dizer que havia começado a estudar para prestar vestibular em Letras. (Ele passou). Vi essas e tantas outras coisas, que poderia passar horas listando tudo por aqui.

Daí que a minha questão é simples: Pobre não lê? Pode ser até que seja verdade, mas nem rico consegue ler sem livro, né? Reduzir os preços dos produtos, ampliar políticas de distribuição e abastecimento de bibliotecas públicas, subsidiar (e não taxar) a produção nacional, promover políticas educacionais de estímulo à leitura e a escrita, incentivar autores e editoras independentes, profissionalizar o mercado editorial... isso sim é o que vai mudar o país. E não se enganem: quem trabalha na contramão sabe disso.

Concluo este post não com palavras minhas, mas com a resposta coletiva que minha primeira turma de literatura deu, ao fim de um ano de oficinas, à pergunta: Para que serve um livro? Espero que hoje, em especial, nesse Dia Mundial do Livro, a pergunta encontre respostas sólidas por aí também.

Para quê?

Para soltar a imaginação, quando a gente estiver muito pensativo.

Para desabafar, quando o coração estiver apertado.

Para aprender a ter respeito, quando todo mundo te desrespeita.

Para fazer uma serenata, quando a gente está apaixonado.

Para conhecer outros mundos, sem sair do seu mundo.

Para viajar, quando estamos sem dinheiro.

Para dizer que a gente está com saudade, quando alguém da família morreu.

Para ser feliz, quando a vida está chata.

Para vencer a timidez, quando a gente tem vergonha.

Para se distrair, quando tem prova no dia seguinte.

Para ser poético, quando a tristeza machuca.

Para fazer uma comunhão, quando a gente está na solidão.

Para brilhar, quando sua luz está apagada.

Para ter esperança, quando não se tem mais nada.

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