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RECANTO DA PROSA

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O broche

Atualizado: 7 de jan. de 2020

para a Raquel Duaibs



Sempre gostei de coisas miúdas, delicadas, que parecessem frágeis e que eu pudesse carregar às escondidas, feito um segredo. Estávamos de férias e fazia calor naquele dia, meus primos haviam chegado à conclusão de que eu era pequena demais para fazer parte da brincadeira e tinham me expulsado do quintal aos gritos de “café com leite”. Sentia tanta raiva, mas tanta raiva, que chorava. De fúria, apenas. Procurei o quartinho de costura de minha avó, buscando seu colo e desejando com violência sua ira bíblica que, eu sabia, viria a se abater mais tarde sobre eles, feito uma praga.


Mas vovó tinha saído para ir à venda e não havia nada no quartinho além de poeira, luz e fiapos. Eu sabia que não devia abrir a gaveta da máquina de costura, que havia agulhas ali e que vovó tinha muitos ciúmes de suas linhas. Mas sabia também que a caminhada até a venda demorava quase uma hora para cada lado e que os cachorros sempre latiam quando alguém se aproximava, mesmo sendo um rosto conhecido. Eu poderia ouvi-la chegar. Teria tempo para correr, era pequena e rápida, cabia em qualquer esconderijo, dominava com maestria a arte de me fazer invisível. Respirei fundo, olhei para os lados, consciente de meu pecado, senti uma gota de suor escorrer pela nuca, não sei se filha do mormaço ou do medo, me perdoei e abri a gaveta.


Vovó nunca foi uma pessoa organizada, nunca foi metódica como eu. E a visão de todos aqueles carreteis, tão coloridos e emaranhados, me despertou a vontade imperativa de lhes dar alguma lógica, separá-los, acariciá-los, beijar cada um deles e pô-los no lugar. A selvageria nas gavetas de vovó me dava medo. Àquela altura das férias, eu já havia arrumado sua penteadeira, o guarda-roupas e o quartinho dos fundos - de longe o maior desafio. Da primeira vez, vovó riu muito, pediu desculpas pela bagunça e me deu uma colher de doce de leite. Da segunda, não riu nem se desculpou, apenas agradeceu e me deu outra colher de doce. Foi apenas da terceira vez que vovó pareceu assustada. Perguntou se alguém havia me ajudado, disse que eu era uma criança estranha e me mandou ir brincar com a neta da vizinha. Eu gostava de arrumar coisas, só não entendia por quê. Vovó também não entendia, mas desconfiava. Intuía que tanto desassossego em arrumar a casa só podia mesmo vir de uma urgência em arrumar o que minhas mãos não alcançavam. Em pôr ordem no que vinha de dentro.


Comecei por uma caixa de linhas fofas, das que vovó usava para fazer forros, um para a mesa da sala, um para cobrir a televisão de tubo, que chiava e chuviscava quando chovia; muitos para as cômodas dos quartos, sempre redondos, sempre em padrões geométricos, que ela copiava de uma revista amarelada pelo uso. Passei depois para as linhas finas, enrolando-as pacientemente nos carreteis, me sentindo uma princesa numa torre silenciosa, cujo único deleite fosse o de enrolar fios coloridos e separá-los por cores. Evitava a caixinha de agulhas e alfinetes, temia ser picada e acabar num sono de morte, como acontecia nos contos de fadas. Mas foi então que eu a vi, perdida entre aqueles sóbrios e ameaçadores pedaços de metal: uma flor em um cristal.


De todos os tesouros da terra, nada jamais havia me parecido tão sedutor. Devagar, com muito cuidado, levei meus dedos até a caixinha e mergulhei-os entre as agulhas, deixando de ser uma princesa para me tornar uma cavaleira de armadura brilhante, com a missão de salvar aquela rosa perdida entre os espinhos. Nenhuma agulha me feriu, mas ao pinçar o cristal entre os dedos, senti uma ferroada e recuei, deixando-o cair novamente na caixinha. Uma pequena e escura gota de sangue me pôs tonta e levei o dedo à boca, sentindo o gosto metálico que trouxe de volta a vontade de chorar. Me senti punida pela desobediência. E envergonhada, por não ser uma princesa, nem uma cavaleira, mas por não passar de “café com leite”; pela criança confusa e sistemática que eu era.


Os cachorros não latiram naquele dia. E quando vovó voltou, eu ainda chorava no quartinho de costura, com o dedo na boca, não mais temendo, mas desejando o sono profundo dos encantamentos. Quando a vi parada à porta, solucei assustada. Não tivera tempo de fugir, nem de devolver à gaveta tudo o que havia tirado de lá. E sabia que iria levar uma bronca, que ficaria de castigo e que meus primos iriam rir de mim; mas vovó apenas deixou a bolsa na mesa coberta de moldes, tirou da poltrona uma cesta com retalhos, colocou-a no chão, se sentou e bateu as mãos nas coxas grossas, convidando-me.


– Quer me contar o que aconteceu?


Balancei a cabeça em negativa e, sem dizer palavra, me aninhei em seu colo. Ela esperou que eu chorasse até me acalmar e só então repetiu a pergunta.


– Furei o dedo.


– Deixa eu ver.


O furo havia se transformado num calombinho, como uma picada de mosquito, e vovó disse que não era nada sério. Pediu licença, mandou esperar ali, saiu e voltou pouco depois, trazendo um algodão que fedia a vinagre e uma folha gordinha de uma planta que eu já vira no quintal, mas que me parecera ameaçadora demais para tocar. O vinagre ardeu, mas a gosma branca que vovó tirou da folha foi como um beijo. Ao fim do processo, vovó disse que eu iria ficar bem e só então me repreendeu.


– É por isso que não pode mexer, entendeu? Se tivesse me obedecido, não tinha enfiado uma agulha no dedo.


– Não foi uma agulha.


– Foi o quê, então?


Apontei o cristal na caixinha e vovó estendeu a mão até ele.


– O broche?


– É – respondi, só então percebendo o alfinete ali. – O que é isso?


– É de usar assim – disse ela, prendendo o broche ao decote da blusa. Vovó era a única senhora do arraial que usava blusas como aquela, com os ombros expostos e a curva dos seios à mostra. – Gostou?


Fiz que sim com a cabeça e vovó tirou o broche do peito.


– Se eu te der de presente, promete que não vai mais entrar aqui?


Balancei a cabeça mais uma vez e vovó prendeu o broche à minha roupa.


– Tem coisas que podem ficar bagunçadas – disse ela. – Não precisa arrumar a casa toda.


Já faz algum tempo que vovó não está mais por perto para me pôr no colo ou curar minhas feridas, mas o broche continua comigo. O alfinete enferrujou, o cristal – que na verdade é acrílico – escureceu, meus primos já não acham que sou “café com leite”, e às vezes ainda faço faxina quando estou nervosa. Já tentei aprender a costurar, mas não levo jeito. Tenho em casa um ateliê de pintura onde me sinto muito confortável, mesmo que ele esteja constantemente bagunçado; e demorei, mas finalmente entendi que de nada adianta arrumar a casa sem arrumar o espírito, que a criatividade anda de mãos dadas com um pouco de caos, e que nem tudo precisa ter lógica.


 

Este texto foi produzido durante uma oficina do curso "Margens: entre cicatrizes e poesia, o que fica?" conduzido pelas escritoras Ryane Leão ("Tudo nela brilha e queima") e Lâmia Brito ("Todas as funções de uma cicatriz"), com mediação da jornalista Jéssica Balbino.



Da direita para a esquerda: Ryane, Jéssica e Lâmia.

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