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RECANTO DA PROSA

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Tapetes trocados

Atualizado: 6 de fev. de 2020



Entra ano, sai ano, e todo fim de outubro é a mesma coisa: tem sempre alguém por perto pra reclamar do Halloween. Tem aquela turma que se acha nacionalista por dizer que não comemora feriado gringo. Tem o povo da Igreja dizendo que o Halloween é festa satânica. Tem a galera fitness indignada com a quantidade de doces que as crianças consomem... e tem gente que é só amarga mesmo.


Mas vejam bem, caros adultos: o Halloween não é sobre vocês. Não é para vocês. Nenhuma criança está preocupada com o imperialismo norte-americano, demônios ou calorias. O que as crianças querem (e, convenhamos, é só uma vez por ano, dá pra aguentar sem reclamar) é pintar a cara, vestir uma fantasia e correr por aí extorquindo doces ou punindo quem se recusa a entrar na festa. O dia das bruxas é o carnaval das crianças, com a diferença de que ninguém fica bêbado de açúcar. É um dia de estimular a imaginação e o jogo, conhecer os vizinhos e se divertir. 


No meu prédio, por causa do calendário, o Halloween foi comemorado no dia primeiro, sexta-feira. Tive um dia horrível nessa sexta. Cheguei em casa esgotada, com dor nas costas e um terrível mal-humor. Reclamei do elevador que demorava a chegar, reclamei do celular sem sinal, reclamei da mochila pesada e do piso sujo - que me impedia de deixar a mochila no chão. Mas daí o elevador chegou.


Entrei e fui recebida por um coringa-vampiro ruivo; uma bruxa e um "não sei o que eu sou, mas olha só o que eu tenho" que exibia, orgulhoso, uma enorme foice de plástico. Os três usavam capas escuras, carregavam baldinhos em forma de abóbora e queriam me mostrar os doces que tinham conseguido. Ganhei um chiclete do coringa-vampiro ruivo, antes que qualquer um de nós dissesse qualquer coisa. Ele só olhou pra minha cara de cansada e achou que seria uma boa ideia. Perguntei se era pra mim e ele balançou a cabeça. Depois me mostrou os dentes sujos de corante vermelho pra provar que era vampiro mesmo e eu acreditei.


Ao descer do elevador, me senti culpada por ter passado a semana toda protelando a ida ao supermercado - sabia que devia ter comprado um saco de balas. Eu é que deveria estar distribuindo chicletes, ao invés de ter ganhado um. Mas conversar com aquelas crianças durante aqueles poucos minutos foi o suficiente pra me garantir uma noite um pouco mais feliz, um pouco mais doce. E a coisa não parou por aí.


Hoje cedo, quando acordei e peguei o elevador pra ir até a academia, no lugar das criaturas fantásticas da noite anterior, me deparei com o sujeito com quem tive uma discussão no ano passado, durante o período eleitoral. Ele estava enfurecido porque as crianças haviam roubado seu tapete. Tive de esconder o riso, enquanto ele contava a situação ao meu namorado, mas quando chegamos ao hall, não me aguentei. Havia bem uns quinze a vinte tapetes no chão - e esses eram os felizardos que já haviam sido encontrados e dispostos ali à espera do resgate.


Na academia, mais gente reclamando. Um grupo de moradores procurou a administração do prédio para mobilizar os colaboradores a fazerem uma busca pelas áreas comuns do condomínio. Alguns tapetes tinham sido trocados de andar, então os vizinhos precisaram sair conversando uns com os outros para encontrar seus objetos perdidos. "O meu tem umas patinhas de cachorro, sabe?", "Você viu um redondo, com a bandeira do São Paulo?".


Na esteira, uma mulher ofegante praguejava contra o Halloween. "Não sei qual é a graça disso! Tinham que olhar as câmeras de segurança pra saber quem fez isso e multar os pais das crianças! As pessoas não sabem mais dar educação pros filhos, dá nisso". Pensei, com uma pontada de tristeza, no quanto somos mesquinhos e ridículos. Alguns tapetes trocados de lugar e já nos desesperamos. Queremos encontrar os culpados. Queremos puni-los. Mesmo que sejam apenas crianças. Perdemos a capacidade de nos divertir, nos incomodamos por ter de bater à porta dos vizinhos, desaprendemos a rir de nós mesmos. 


E é por isso que, ano após ano, me vejo brigando pelo Halloween. Pelo direito de ser criança. Pelo direito à fantasia e à brincadeira em noites sombrias, pelo direito a um pouco de doce. E, é claro, a uma ou outra travessura.


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