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RECANTO DA PROSA

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A política e as festas de fim de ano



Hoje li uma crônica de um colunista que acompanho há algum tempo, sobre as festividades de fim de ano e o medo do climão que está por vir. Não acho que a coisa vai ser pior do que as festas de 2018 ou 2019 (exceto, é óbvio, por um vírus avassalador), mas tenho a impressão de que o barulho será menor à mesa. Sinto que muita gente se cansou de tentar conversar. Em outras palavras: entregou os pontos e achou melhor evitar briga. Pra ser sincera, ando nessa onda. Não por falta de ideias, respeito às divergências ou até mesmo vontade de debater (sim, eu gostava dos debates no colegial), mas por falta de energia. O cansaço tomou posse. E estou ciente da hipocrisia, mas também me falta crença no diálogo - eu que me digo escritora e defensora das palavras. Estamos fechados em nossas bolhas. Todos nós, cada vez mais. E assumo minha estagnação nessa zona de conforto, mas reitero meu motivo: exaustão. Tentei por muito tempo entrar na bolha do outro, ser empática, me posicionar de outro ângulo - mas já não consigo continuar nessa luta. Tentei de verdade, pode acreditar.


Esse colunista ao qual me referi no começo do texto - vamos chamá-lo de João - ainda está tentando, bravamente, provar a importância do diálogo com aqueles que pensam radicalmente diferente de nós em matéria de política. Acho louvável. Queria ter essa coragem, essa esperança e fé em nós. Mas as perdi. Política é mais do que lulismo x bolsonarismo. Isso é raso, imaturidade pura. A política diz respeito ao nosso posicionamento social enquanto cidadãos; e mais: diz respeito aos nossos valores enquanto seres humanos.


Segundo o Houaiss, temos algumas possibilidades de definição do termo. Evidentemente, uma olhada no dicionário não resolve muita coisa, tratando-se de um tema tão amplo, mas para um post descompromissado com uma análise mais profunda, essas definições já devem nos servir. Vamos dar uma olhada, sim?


Po.lí.ti.ca (substantivo feminino)

1 arte ou ciência de governar;

2 arte ou ciência da organização, direção e administração de nações ou Estados;

3 série de medidas para a obtenção de um fim;

4 conjunto de princípios ou opiniões;

5 cerimônia, cortesia, urbanidade;

6 habilidade no relacionar-se com os outros;


As duas primeiras são mais evidentes no uso corriqueiro da palavra e estão mais relacionadas aos conceitos de direita x esquerda, conservadorismo x progressismo, decisões governamentais etc. Por isso, não pretendo me deter nelas.


Mas olha o item 3: política é tomar atitudes que possuem um objetivo. Não fazemos isso desde crianças? A política não se encerra na discussão, ela tem um fim. Temos vivido uma crise de saúde global, e não vejo como alguém pode querer outro objetivo além do fim da pandemia (embora essas pessoas também existam). Mas é aí que o problema começa: em quem confiar para adotar medidas de solução? Particularmente, o que me parece o mais sensato é acreditar nas recomendações dos órgãos de saúde, formados por médicos, especialistas e pesquisadores que dedicaram toda uma vida ao estudo e à prática da medicina. Não nos vídeos que chegam pelo whatsapp, gravados por políticos, militares, empresários ou youtubers deste milênio. E digo mais: devemos acreditar no que é consensual entre a maioria da comunidade médica, não nos desviantes. Só que daí temos outro problema: como saber ao certo quem é essa maioria quando as informações que penetram nossas bolhas sempre atestam que nós somos a maioria e, portanto, estamos certos?


Não sei se você já assistiu a uma animação chamada Divertidamente, mas se não fez isso, recomendo que assista. A história se passa na cabeça de uma garotinha tentando administrar as emoções que guiam sua vida; e há uma cena genial em que uma locomotiva sofre um acidente, carregando caixas de bloquinhos com fatos e opiniões. As caixas se abrem misturando os conteúdos, e as emoções que estão personificadas em cena devolvem tudo às caixas, sem distingui-las. (Imagino que a Terra plana tenha surgido de um descarrilhamento trágico em que muitos bloquinhos foram destruídos). E eu te pergunto: existe metáfora mais clara para o modo como nossos debates têm ocorrido?


Seguimos para o item 4 do Houaiss, e aqui destaco uma palavra: princípios. Opiniões são mais suscetíveis à mudança. Já mudei de opinião sobre várias coisas, de variados graus de relevância - mas em todos os casos, houve um fator indispensável: eu precisei ouvir, apenas ouvir, sem contra-argumentar (nem mesmo em pensamento), quem tinha algo diferente a me dizer. Aprendi a beber café. Comecei a gostar do meu cabelo cacheado. Descobri que me interesso mais por literatura contemporânea do que clássica. Mas essas são pequenas mudanças individuais. Falando de coisas mais sérias, deixei de acreditar em meritocracia; percebi que carregava um monte de crenças machistas que só serviam para me prejudicar; e, para dar um exemplo mais concreto, estou cem por cento convencida da importância das cotas estudantis e de mercado (tema recorrente nos debates do colegial, sobre o qual eu tinha uma opinião oscilante). É vergonhoso admitir essas coisas? Claro que é. E tem muita gente por aí que também passou por todo esse processo, mas acha melhor empurrar o passado pra debaixo do tapete e fingir que sempre foi desconstruidão. Eu não fui. Precisei me desconstruir para me reconstruir de uma forma que acredito ser um pouco melhor, e procuro continuar nessa pegada diariamente. Mas apesar da vergonha, quis admitir essas coisas porque tenho um fim: provar que mesmo as convicções mais enraizadas podem ser alteradas no contato verdadeiro com o outro. (Por favor, não me entenda mal, não quero confete nem biscoito, só estou tentando argumentar a favor da ideia de que a mudança é possível e frequentemente desejável para o bem comum).


Mas como eu disse, a palavra que destaco no item 4 é "princípios". Nessa, a coisa fica mais complicada. Divergência de opinião é ok. Mas como lidar com aquilo que fere minha ética mais profunda? O que fazer quando você pergunta a uma pessoa amada se ela acha justo que eu entre no mesmo cargo que um homem, numa mesma época, com um currículo ainda melhor e mais experiência na área, ganhando 25% a menos - e a resposta que escuto é: "sim, acho justo porque você pode engravidar e daí o contratante vai ter prejuízo". Como lidar com as piadas racistas e homofóbicas sabendo o quanto isso fere violentamente milhões de pessoas, mesmo que eu não seja diretamente afetada? Como agir se num debate trago referências históricas, dados de pesquisa, depoimentos empíricos, declarações de autoridades, ciência... e escuto em troca: "Mas e o Lula?"; "Não é o que está escrito na Bíblia"; "É por isso que o mundo tá chato"; "Não vou tomar porque ali tem chip comunista que vai mudar meu DNA e fazer meus netos serem homossexuais". Sério, estou perguntando de verdade, o que fazer? O pior é que essas respostas vencem a discussão. Porque a incredulidade é tão grande e a impotência é tão avassaladora, que você perde o rumo de casa. O que fazer se esgotei tudo o que tenho e nada surtiu o mínimo efeito? É por esse cansaço que ando calada. Pela minha sanidade e autopreservação.


Queria acreditar em João, o colunista. Ele citou Montaigne, falou de amizade e laços de família. Mas olhemos agora para os itens 5 e 6. Discordei de João, no plano das ideias, porque perdemos a cortesia e a habilidade de nos relacionarmos. No entanto, respeito João. Não quis e não pretendo deixar um comentário no jornal ofendendo a pessoa do João. Continuarei lendo sua coluna. Aprecio o exercício intelectual de entender e contrapor as ideias do João. Se ele cita Montaigne, trago outro filósofo em contrapartida. Cito Karl Popper e seu paradoxo da intolerância.¹ É simples: ser tolerante com o intolerante é perigoso, porque a intolerância é crescente e poderosa; e quando assume o poder, ela esmaga os tolerantes e institucionaliza a repressão violenta das divergências. Trago ainda uma escritora feminista, contemporânea: Margaret Atwood. A autora diz que é arriscado não levar a sério a ascensão da intolerância, porque nessa brincadeira as minorias perdem direitos conquistados a duras penas, ao longo de décadas, em questão de dias. Ainda em suas palavras: a história nem sempre anda pra frente; às vezes ela anda pra trás. E completo: retroceder é muito mais fácil e rápido que evoluir.


Esse é o tipo de debate que eu queria ter com o João. Seria agradável e respeitoso. Não tanto pelos filósofos e citações, que soariam ridículos diante do peru de Natal, mas pelo foco nas ideias em lugar do desejo egoico de calar o outro para provar um ponto. No entanto, infelizmente não acredito que isso seja possível nas festas de fim de ano da maior parte das famílias brasileiras. Ou do mundo todo, diga-se de passagem.


Daí que você pode estar se perguntando: Fazer o quê, então? Qual é a sua proposta?


Sinto muito, mas não tenho nenhuma. Estou convicta de que a base de tudo está no investimento educacional, mas não tenho a menor ideia de como convencer nossos governantes a injetar dinheiro em algo que só trará resultados depois de no mínimo 40 anos (dentre os quais, um aumento no grau de consciência política para que o povo escolha melhor seus representantes). Também sinto muito se causei incômodo, se você se sentiu lesado/a por ler textão à toa, ou se chegou até aqui meio descrente. Há dias em que temos coisas bonitas pra dizer. E há os outros dias. Hoje não vim propor soluções. Só escrevi mesmo pra deixar umas perguntas no ar, desabafar e conversar imaginariamente com o João. Caso você tenha alguma ideia do que fazer neste fim de ano (além de ficar em casa e evitar aglomerações, porque já vou fazer isso mesmo), peço a gentileza de me contar.


***


¹ "A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles [...] pode ser que eles não estejam preparados para nos encontrar no nível dos argumentos racionais, começando por criticar todos os argumentos, proibir seus seguidores de ouvi-los e ensinar a responder com punhos ou pistolas. Devemos, então, reservar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar o intolerante. Devemos exigir que qualquer movimento que pregue a intolerância fique fora da lei e que qualquer incitação à intolerância e perseguição seja considerada criminosa [...]" (POPPER, Karl. The open society and its enemies)

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