Dia das crianças é dia de falar de literatura infantil, certo? E neste ano, ao invés de postar a tradicional lista de indicações de leitura para crianças e jovens, decidi fazer uma resenha do maravilhoso "Papo reto e Papo curvo", escrito pelo querido João Luiz Guimarães, ilustrado pela artista Rosinha Bezerra e publicado pela Editora do Brasil.
Além de ter o selo Altamente Recomendável da FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil), "Papo reto e Papo curvo" chegou à lista dos 10 finalistas do prêmio Jabuti, na categoria de literatura infantil. Incrível, não é? Mas para quem não sabe o que isso significa, aí vai uma breve explicação.
Todos os anos, a FNLIJ recebe das editoras as primeiras edições de dezenas de livros, dentre os quais aqueles considerados de melhor qualidade são selecionados para compor o acervo básico da fundação (criado em 1996 com o objetivo de orientar a compra por parte das secretarias de educação, escolas e bibliotecas). Feito isso, os dez melhores livros de cada categoria do acervo básico são premiados com o selo Altamente Recomendável - o que significa que se você entrar em uma livraria e ficar em dúvida do que levar, é sempre uma boa ideia procurar pelo selo da FNLIJ.
Mas e o famoso prêmio Jabuti? Do que se trata? Referência no mundo dos prêmios literários da América Latina, o Jabuti é um ativo cultural da sociedade brasileira, que já existe há 60 anos, sempre em busca de sintonia com os leitores e todos aqueles que se dedicam a trabalhar pelo livro. Seu maior diferencial em relação aos outros prêmios é a sua abrangência: além de valorizar escritores, o prêmio destaca a qualidade do trabalho de todas as áreas envolvidas na criação e produção de um livro.
Mas o que temos a dizer sobre "Papo reto e Papo curvo" para além de seu reconhecimento diante da crítica especializada?
Antes de dar uma opinião mais pessoal, vamos falar um pouco dos elementos que constituem a obra: texto, ilustração e projeto gráfico. Tentei de todas as formas analisar um de cada vez, mas eles estão tão entrelaçados que seria impossível pensá-los em separado.
Abrimos o livro e logo na primeira página da narrativa nos deparamos com a grande pergunta, que fisga de imediato a atenção do leitor: "Soube da última? Última? Última?"
A pergunta abre um diálogo que irá compor toda a história, entre um personagem de papo reto, daqueles que vão direto ao ponto, e um outro que dá voltas e voltas na conversa: o papo curvo. Em harmonia com o discurso, a ilustração nos apresenta dois personagens estranhíssimos e bastante distintos: um de papo reto (e aqui o "papo" se refere mesmo à região abaixo da face) e um de papo curvo. Mais do que a curiosidade pelo que seria essa última notícia de que os personagens estão falando, o que nos prende à leitura é a curiosidade pela forma com que o autor irá brincar com os sentidos, a grafia e os sons das palavras e expressões da língua. É um jogo linguístico: significante e significado andando de mãos dadas, no mesmo patamar. E é literatura do mais alto grau poético.
Esse olhar, esse verdadeiro olhar para as palavras, é o que distingue a literatura da linguagem do cotidiano: essa possibilidade de dar nova vida ao que nos parece prosaico e comum; de olhar para as coisas como se as estivéssemos vendo pela primeira vez - bem do modo como as crianças enxergam o mundo, com ineditismo e curiosidade, sem a cegueira adulta de quem já se acostumou com as coisas da forma como são - e já não se surpreende com mais nada.
Mas a atenção às palavras e as ilustrações singulares não esgotam a criatividade do livro, pois, como eu disse, o projeto gráfico também está intimamente alinhado ao texto (tanto verbal quanto não-verbal). Pessoalmente, escolhi resumi-lo em duas palavras: simples e inteligente; a começar pela escolha de fontes diferentes para a representação da fala de cada personagem. Ainda sobre este aspecto do livro, o leitor atento irá perceber uma proximidade entre os personagens e o desenho das letras que compõem cada fonte. Papo reto é negrito, grande, sem serifas. Papo curvo é mais suave, serifado, dá voltas na página. Simples. É um detalhe. Mas todo mundo sabe que Deus está nos detalhes, não é?
Tudo está conectado. Tudo tem um porquê, uma carga de informação, uma sacada inteligente, uma escolha consciente de provocar este ou aquele efeito. E, ao final da leitura, tenho certeza de que ninguém conseguirá olhar da mesma forma para expressões como "a boca da noite", "as asas do vento", "uma notícia fresquinha", "a orelha do livro" ou "a página virada", apenas para citar algumas.
Particularmente, achei o livro muito divertido e desafiador. Tenho comigo uma crença de que o bom livro infantil é aquele que consegue acessar a criança sem subestimá-la, adequando-se à sua linguagem e ao seu universo lúdico; mas sem deixar nada a desejar para o adulto, possibilitando a este uma experiência de leitura tão rica (embora diferente) quanto aquela tida pela criança. É disso que falamos quando dizemos que o livro tem camadas. É da sua possibilidade de ser lido, relido, interpretado e reinterpretado de diferentes maneiras por diferentes públicos. Assumo, sem constrangimentos, que entre a minha primeira e a minha segunda leitura, descobri coisas que não tinha visto antes e me diverti muito com a sensação de ir percebendo as brincadeiras de linguagem.
Ainda não tive a oportunidade de ler "Papo reto e Papo curvo" junto a uma criança, mas, pela minha experiência com oficinas de literatura para este público, tenho certeza de que os pequenos leitores aprovariam o livro. Da minha parte, está 100% aprovado!
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