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RECANTO DA PROSA

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A palavra que resta



No começo de abril, a convite da Companhia das Letras, participei de um evento online com diversos autores que estariam lançando seus títulos por agora; e me lembro de ter ficado muito curiosa acerca do livro A palavra que resta, de Stênio Gardel. Para quem não sabe do que se trata, segue um trecho do texto de orelha:

"Aos 71 anos, Raimundo Gaudêncio decide aprender a ler e a escrever. Nascido e criado na roça, não foi à escola, pois desde cedo precisou ajudar o pai na labuta diária. Mas a família e a vida no sertão há muito ficaram para trás. Desse tempo, ele guarda apenas a memória de um silêncio nunca decifrado: a carta que recebeu de um amor de juventude, Cícero, há mais de cinquenta anos. Descobertos, Cícero partiu sem deixar pistas, exceto aquela carta, a mensagem muda que Raimundo nunca pôde ler."


De antemão, já adianto que sim, eu gostei muito do livro. Tenho minhas críticas, mas o saldo sem dúvida é positivo. E não, eu não faço críticas apenas para polemizar ou porque me divirto em ficar procurando “pelo em ovo” no texto alheio. O negócio é que eu trabalho com isso. Na minha profissão, sou paga para encontrar problemas, então o olhar acaba ficando atento a certas coisas. No entanto, é claro, vale sempre lembrar: resenha é texto de opinião! Estou aqui para apresentar a minha, mas não acreditem nela. Leiam o livro, tirem as suas próprias conclusões e depois a gente troca uma ideia. Se tem uma coisa que aprendi com os clubes de leitura é que a diversidade de opiniões sempre enriquece o debate.


Começo então por aqueles pontos que me causaram incômodo. Basicamente foram só dois. Um mais técnico e um do qual nem tenho muita certeza, se quer saber. O primeiro diz respeito à formatação de diálogos. Tenho notado uma forte tendência na literatura contemporânea a mesclar diferentes formatações de diálogo, e me parece que a escolha esteja relacionada ao ritmo de leitura pretendido – mas, honestamente, eu me perco. (E não apenas no livro do Stênio). O problema é que quando isso acontece, meu ritmo de leitura fica emperrado; e acabo tendo de ler e reler o mesmo trecho várias vezes simplesmente para saber quem está falando o quê. Sou de opinião que, num romance, o que de fato interessa é a história; e que uma boa narrativa é aquela que faz o leitor mergulhar nela tão profundamente, que a realidade imediata chega a desaparecer por um instante. A palavra que resta é uma boa história. E puxa a gente pra dentro dela. Mas quando esses detalhes técnicos atravancam meu caminho, me sinto puxada de volta para a realidade e aquele momento mágico de suspensão se quebra.


Quanto ao segundo aspecto, já disse e repito que não estou muito segura dele. O fato é que percebi certo didatismo em alguns trechos, especialmente nas palavras e ações da personagem Suzzanný. Explico: Suzzanný é uma personagem trans que não tem medo nem vergonha de ser quem é. Ela não se intimida com os agressores que a violentam na rua, não lamenta pelo descaso da polícia em relação às suas queixas, nunca deixa de se levantar quando apanha na rua e nunca demonstra o mínimo de hesitação em relação às suas decisões. Em outras palavras: é de uma resiliência heroica inabalável.


Certo, mas qual é o problema? Você queria uma personagem fraca? Óbvio que não. Mas veja bem: Raimundo, o personagem central, também é um personagem forte, só que de outra maneira: ele foi impedido de viver um grande amor, foi rejeitado pela família, precisou lutar contra a vergonha e o medo ao longo de toda a vida, deu mancada (e mancada grande!), se perdeu várias vezes em dilemas existenciais, enfim. Raimundo não é um herói. Ele é humano, como nós, com todas as nossas falhas e confusões – e isso faz com que eu me sinta muito mais próxima dele do que de Suzzanný, independentemente de quais são as questões de cada um.


O que estou chamando de didatismo é a escolha de determinados elementos que estão aí para ensinar alguma coisa de um modo enfático e escancarado. No caso, os ensinamentos mais evidentes me parecem: (1) que a homo/transfobia é uma violência grave capaz de destruir as pessoas em diferentes graus e aspectos; (2) que todo mundo tem o direito de ser quem é, sem medo ou vergonha; e (3) que a sociedade precisa mudar a forma como enxerga a diversidade de gênero e sexualidade, naturalizando e respeitando cada indivíduo. E tá errado isso aí? Não! Mil vezes, não! Mas a questão é a forma como essas coisas são trabalhadas. A título de comparação, coloco duas cenas: na primeira, Raimundo agride Suzzanný a ponto de deixá-la inconsciente, mas depois de olhar para a violência do que fez, começa a passar por um processo interno e gradativo de autoquestionamento e transformação pessoal. Na segunda cena, Raimundo está andando de mãos dadas na rua com ela e, ao notar os olhares tortos pelo caminho, diz as seguintes palavras:


“um dia eles aprendem, eu aprendi, eles aprendem, mas tem que querer, querer sair da ignorância, é quase como eu querendo aprender a ler e a escrever, tomei a decisão de ver o mundo de outro jeito, me sentir mais dentro dele, porque a ignorância faz é isso, exclui, isola, e não era isolado que eu vivia?” (p. 97)


Trechos como este, de um didatismo explícito, me passam a sensação de que o discurso sai por um instante da ficção e escorrega para o campo motivacional e/ou ideológico – o que me incomoda, pois neste processo, eu também saio da ficção e vejo interrompido, mais uma vez, o meu mergulho na narrativa. A cena de Raimundo horrorizado diante de sua própria violência me soa muito mais orgânica, muito mais incorporada à narrativa, do que um trecho como este que transcrevi. É aquela máxima famosa: Show, don’t tell. Me mostre a transfobia e ela será marcante para mim. Me fale dela e o impacto será menor.


Tá, mas então por que você disse que não estava muito segura dessa crítica? Pois é. A questão é que o buraco é sempre mais embaixo. E sejamos sinceros, muita gente parece precisar das coisas bem desenhadinhas para entender. Talvez seja preciso, sim, que Suzzanný seja essa heroína de caráter inabalável, essa inspiração que ofereça aos leitores um ideal de força, autoconfiança e amor próprio. Talvez seja preciso mesmo espalhar algumas frases mais didáticas para deixar bem às claras aquilo que parece óbvio. (Quem foi que disse que “o óbvio também precisa ser dito”?) Talvez seja esse o caso. Sabemos que a discussão em torno da homo/transfobia é complexa e que muita gente se recusa a sequer tentar ouvi-la. Por isso, penso que talvez esse caráter mais escancarado de certas coisas seja necessário, em especial para pessoas que possam estar em conflito com sua orientação sexual e/ou identidade de gênero; seja por questões pessoais, familiares, sociais (ou por todas juntas mesmo, que essas coisas costumam se sobrepor). Afinal a literatura tem disso, né? Essa capacidade de fazer os leitores sentirem empatia e perceberem uma humanidade compartilhada.


Mas vamos agora às críticas positivas, disparadamente mais relevantes. Ali em cima eu disse que numa narrativa, via de regra, o que considero mais importante é a história em si, certo? Pois é. Nisso aí, o Stênio acertou em cheio. O enredo de A palavra que resta é desses que conseguem te prender virando as páginas. Pensa só: Um homem que carrega uma carta fechada por décadas e, aos 70 anos, decide aprender a ler apenas para descobrir o que o amor de sua vida havia lhe dito na juventude é o tipo da coisa que já te pega logo de cara. Some-se o fato de este mesmo homem ter passado boa parte de sua existência lutando contra si mesmo, escondendo sua orientação sexual, sofrendo com a rejeição da família e com sua história de amor não vivida; e voilà: temos uma trama pra ninguém botar defeito. Ah! E não só a trama; temos um personagem central pra ninguém botar defeito.


Se tem uma coisa que merece destaque no livro é a construção de Raimundo. Em maior ou menor grau, quaisquer que sejam os nossos próprios conflitos, todos somos capazes de nos identificar com ele. Vergonha, culpa, dúvida, medo: por mais diversas que sejam as causas disparadoras desses sentimentos, no fundo, todos nós os conhecemos – e todos compartilhamos a dor que decorre deles. Mas não é apenas Raimundo que me pareceu bem construído. Alguns dos personagens secundários também me chamaram muito a atenção, e destaco um deles: o pai. (Claro. Conflitos parentais na literatura estão aí desde Édipo). Destaco esse pai (Damião) devido à complexidade do caráter desse homem, cujo irmão (Dalberto) foi morto pelo pai deles quando assumiu sua homossexualidade. Numa lógica perversa e confusa, Damião quer “livrar” o filho da homossexualidade para que Raimundo não morra; então decide agredi-lo diariamente para fazê-lo mudar. Nas mãos de um autor menos competente, esse pai seria um vilão de novela das seis, daqueles que são maus porque sim. Mas em A palavra que resta, apesar de toda a sua crueldade, somos capazes de sentir compaixão por ele; por esse homem que viu o próprio pai matar o irmão, que chegou tarde para salvá-lo e ergueu uma cruz silenciosa em sua lembrança, contrariando o desejo de todos de apagar a existência de Dalberto.


“e eu não tive mais você do meu lado, meu irmão, dividi a vida com um vazio, e esse vazio cresceu, me tomou inteiro, eu não tenho mais o que dividir, que meu filho foi embora e, longe de mim, está só esperando a cruz precoce dele.” (p. 55-56)


E por fim, mas não menos importante, vale ressaltar, com louvores, o uso da linguagem. É impressionante como Stênio Gardel consegue tocar em temas tão duros com uma linguagem tão bonita, lírica até – e esse contraponto entre o horror e a beleza fortalece as duas coisas. Há algo de roseano nos cenários áridos, nas palavras dos personagens e em certas construções frasais que nos fazem querer reler capítulos inteiros, apenas pela fruição estética. Sente só esse trecho:


“tem palavra que a gente escuta na vida que parece poesia, se as palavras se esticam e esticam o horizonte da gente, Tu quer aprender a ler e escrever, Gaudêncio? te ensino, estou aprendendo, Cícero, tu aumentou o meu poente, mas depois pintou ele de um encarnado grande demais, um encarnado encarnado demais que o pai riscou nas minhas costas, imundo, tem palavra que faz é o contrário também: encolhe e escurece a vista da gente, vermelho coagula em preto.” (p. 59-60)


(!!!)

Sério. Lê de novo e me fala se não é de aplaudir a maestria?


Meus agradecimentos à Companhia das Letras por mais essa leitura!



Dados catalográficos


Título: A palavra que resta

Autora: Stênio Gardel

Editora: Companhia das Letras

Número de páginas: 151


Sinopse:

Uma carta guardada por mais de cinquenta anos – e jamais lida. É essa a relíquia que Raimundo leva consigo. Homem analfabeto que na juventude teve um amor secreto brutalmente interrompido, ele resolve que ainda é tempo de aprender a ler e talvez decifrar essa ferida aberta do passado.


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