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RECANTO DA PROSA

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A pediatra

Depois de um longo período sem resenhas, hoje vamos falar um pouquinho desse livro que eu estive torcendo para receber da Companhia das Letras. Desde que li Os Malaquias, me encantei pela literatura de Andréa del Fuego, então fiquei bem feliz quando A pediatra chegou por aqui.


O livro é curto, desses que prendem a atenção e que nos fazem ler a história toda de um fôlego só, mas a pequena extensão não deixa nada a desejar em matéria de qualidade narrativa. Além de tudo, achei um livro corajoso. E vou contar um pouquinho do enredo para que vocês entendam o porquê.



A pediatra do livro é Cecília, uma neonatologista que parece ter optado pela carreira médica mais por conveniência (e pelo pai pediatra) do que por qualquer tipo de paixão ou vocação. A verdade é que Cecília não tem nenhuma paciência para as parturientes, nenhum apreço por crianças, e faz de tudo para se livrar delas o mais rápido possível, encaminhando-as para especialistas de outras áreas na primeira oportunidade, sem estabelecer laços afetivos com ninguém.


Apesar da frieza, no entanto, Cecília é uma profissional competente e bem-sucedida, mas que está perdendo gradativamente o seu lugar para os novos especialistas em partos humanizados. Com um profundo desprezo pelas doulas, parteiras e um médico humanista que está "roubando" seu lugar no hospital, Cecília vai se tornando cada vez mais impaciente e chega a desenvolver comportamentos persecutórios.


Mas a história não para por aí. Como se não bastasse, Cecília está tendo um caso – sem nenhuma culpa ou constrangimento – com o marido de uma de suas pacientes; uma mulher que, por sinal, não suspeita de nada e aceita que Cecília faça o parto de seu filho: Bruninho. No dia do parto, Cecília não sente nada de particularmente especial pela criança, mas tudo muda quando, dois anos depois, o pai do menino o leva para uma consulta (que não passa de uma desculpa para ver a amante) e Cecília sente uma atração súbita, inexplicável e inédita pela criança. É então que as coisas se complicam. Nas palavras da personagem, aquele filho é seu, apenas não saiu dela; e esse sentimento gera uma obsessão crescente e doentia da pediatra pelo menino.


Agora me explica uma coisa: como é que Andréa del Fuego nos faz sentir empatia por uma personagem dessas?! Como foi que acabei torcendo por Cecília?! Pois é. Lembra do que eu disse sobre a autora ser corajosa? Em tempos de cancelamento, tratar dos partos humanizados, da maternidade e da sagrada vocação médica com tanto desdém, a ponto de beirar o puro desrespeito, a decisão só pode mesmo ser descrita assim.


Mas atenção! "A opinião dos colunistas não reflete a opinião do jornal", ok? E o mesmo vale para a literatura. A opinião dos personagens, seus valores, sua ética, suas decisões e sua moral não refletem a pessoa que os criou, então nada de cancelar a autora! Vamos exemplificar para deixar mais claro. Humbert Humbert não faz de Nabokov um pedófilo. Raskólnikov não faz de Dostoiévski um assassino. Bentinho não faz de Machado um babaca ciumento. E por aí vai. Lolita é um grande livro. Crime e castigo é outro. Dom Casmurro também. Certo? Certo. Em outras palavras: os personagens não são reflexos de seus autores. Muita gente confunde as coisas.


Se tem algo no que a literatura mexe com a gente é na sua capacidade de nos fazer olhar para aquilo que não queremos enxergar e muito menos admitir sobre nós mesmos. Sabe aquelas coisas feias que você esconde de todo mundo? Sabe aquelas que você esconde de si? E sabe aquelas que você nem sonha que estão aí dentro? Pois é. Personagens como Cecília nos obrigam a encará-las. E isso, meus caros, é o que faz da literatura uma das mais potentes ferramentas para nos humanizar e nos conhecer. (Lembrando que isso é consequência, não motivação. O motivo da literatura é ela mesma).


Obviamente, é preciso tato ao se escrever sobre temas sensíveis, especialmente quando o personagem em destaque é desprezível. E não sei se esse é o livro ideal para gestantes ou puérperas, que podem sair bem abaladas da leitura. (Sendo bem sincera, eu não indicaria num momento tão delicado). Mas se a literatura for viver apenas do que é socialmente aceitável, estaremos perdendo uma grande oportunidade de analisar o lado feio da humanidade – e fazer o mínimo para consertá-lo. Não há como consertar o que não se admite, concordam? Ao menos é no que acredito. E Andréa del Fuego me ajudou a lembrar disso.


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Gostou da resenha? Então não deixe de clicar no coraçãozinho aqui embaixo e deixar sua opinião na caixa de comentários. Dessa forma, você me faz sentir que não estou escrevendo para o além. :D


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