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RECANTO DA PROSA

Cantinho dedicado à leitura e à troca de ideias entre os amantes da literatura. Sinta-se em casa!

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As 1001 noites

Neste momento, a aurora alcançou Sherazade e ela parou de falar. Sua irmã Dinazarde então disse: "Como são belas e espantosas as suas histórias!". E Sherazade respondeu: "Isso não é nada perto do que eu tenho a contar na próxima noite. Isso é, se o rei me deixar viver. E a mente do rei Shariyar ficou tão ocupada com o restante da história que ele pensou: "Por Deus que não a matarei até escutar o que aconteceu depois. Mas na próxima noite eu o farei como fiz com as outras".



O Livro das mil e uma noites é um gigantesco compilado de contos que começa quando o rei da Índia, Shariyar, poderoso e vingativo, descobre que sua mulher o está traindo. Amargurado, o rei parte em uma peregrinação pelo mundo, junto de seu irmão mais novo, Shazaman, em busca de alguém que seja ainda mais infeliz do que ele. No entanto, ao encontrar uma jovem casada com um poderoso gênio, a quem ela havia traído por cem vezes, Shariyar chega à conclusão de que ninguém é capaz de conter as mulheres e retorna para o seu palácio, decidido a tomar uma medida drástica: casar-se com uma jovem a cada noite, mandando matá-la na manhã seguinte para, desse modo, garantir que jamais volte a ser traído.


Depois de muitas mortes, entra em cena a heroína da história: Sherazade, a filha mais velha do vizir responsável pela execução das jovens casadas com o rei. Mas Sherazade, "conhecedora das coisas, inteligente, sábia e cultivada, que a tudo havia lido e entendido", tem um plano estratégico para por fim à violência de Shariyar. Por meio de histórias que vai encadeando, noite após noite, a filha do vizir desafia o rei, inicialmente desconfiado, que vai se tornando cada vez mais seduzido por seus contos.


Segundo o tradutor Mamede Mustafa Jarouche, responsável pela primeira tradução direta do árabe para o português, essas "são fábulas de terror e piedade, de amor e ódio, de medos e paixões desenfreadas, de atitudes generosas e comportamentos cruéis, de delicadeza e brutalidade [...] inumeráveis como a prosa do mundo e fonte de inspiração para escritores tão diversos quanto Proust, Voltaire, Poe, Borges e Machado de Assis".


Durante a quarentena provocada pelo avanço impiedoso do Covid-19, e diante de tanto horror e descrença, minha opção por ler e partilhar essas histórias se deu principalmente pela ideia central da narrativa: a de suportar o perigo da morte por meio de narrativas fantásticas. Longe de ser uma atitude de deliberada alienação, o projeto "Histórias para a quarentena" foi pautado pela ideia de uma suspensão momentânea da realidade, conceito que pode ser melhor compreendido pelas palavras de Tolkien, registradas no ensaio "Sobre contos de fadas":


"Afirmei que o Escape é uma das principais funções dos contos de fadas, e como não os reprovo, é óbvio que não aceito o tom de desdém ou piedade com que tão frequentemente se usa o termo hoje em dia [...] Evidentemente estamos diante de um mau uso da palavra, e também de uma confusão de pensamento. Por que desdenhar um homem se, estando na prisão, ele tenta sair e ir para casa? Ou se, quando não pode fazê-lo, pensa e fala sobre outros assuntos que não carcereiros e muros de prisão? O mundo exterior não se tornou menos real porque o prisioneiro não consegue vê-lo. Usando o escape dessa forma, os críticos escolheram a palavra errada, e, mais ainda, estão confundindo, nem sempre por erro sincero, o Escape do Prisioneiro com a Fuga do Desertor".


Não me entenda mal, em nenhum momento me considero prisioneira por estar em casa. Reconheço o privilégio e não tenho palavras para agradecer àqueles que se arriscam diariamente lá fora, lutando contra o medo e a raiva de quem poderia ficar em casa, mas escolhe o egoísmo. O conceito de prisão, usado como metáfora nas palavras do autor, diz respeito a muito mais do que um espaço físico, mas a tudo o que nos angustia e nos causa um misto de impotência, ansiedade e desesperança - o que é basicamente aquilo que muitos de nós vêm sentindo.


Tenho visto muitas pessoas se sentindo culpadas por seus privilégios, e do outro lado, gente que chega a comemorar a oportunidade de ficar em casa, como se estivéssemos em férias coletivas. Compreendo os primeiros e repudio os segundos. Não estamos de férias e não há como ignorar todo o sofrimento que muitas famílias estão enfrentando, sem abrir mão da nossa humanidade. Mas a escolha de se entregar ao desespero também não ajuda ninguém. E culpa não serve para nada. Ações sim. E em contextos como esses, nos dias em que me sinto mais corajosa, faço o que posso para arregaçar as mangas e contribuir de alguma forma com essa sociedade confusa e problemática da qual não podemos fugir nem desistir.


O que posso fazer é pouco? É. Muito pouco. Não sou médica, não sou enfermeira, não sou pesquisadora e nem faço parte dos grupos de profissionais que não podem trabalhar em casa. Mas me sinto pertencente a um grupo que comumente é considerado como um bando de vagabundos desocupados que vivem às custas dos verdadeiros trabalhadores, ou seja: a classe artística. Desde muito pequena eu soube que era escritora e segui esse caminho porque não sei e não consigo fazer outra coisa. E o que tenho a dizer é que a classe artística tem me dado um grande orgulho, fazendo aquilo que sabe para minimizar o sofrimento de todos. A arte humaniza. Sempre soubemos disso. Sempre lutamos por isso. Por algo além da mera sobrevivência do corpo físico. Assim como Sherazade, fazemos o que está ao nosso alcance para lidar com a morte. Com o conceito de fim.


Mas há um pouco mais a se fazer. Diariamente, inúmeros projetos vêm trabalhando para minimizar os efeitos do coronavírus em regiões de vulnerabilidade social e, mesmo consciente de que o enfrentamento das mazelas que atingem os habitantes desses lugares é uma responsabilidade do Estado, venho contribuindo com alguns deles e divulgando-os junto de minhas histórias. Devemos abrir mão de cobrar políticas governamentais e fazer caridade para aliviar nossa consciência? Claro que não. Mas somos capazes de fazer as duas coisas já que temos vivido sob um desgoverno impiedoso e absolutamente irracional. Você pode discordar de mim, sinta-se à vontade, não tenho nenhum problema em conversar sobre opiniões divergentes da minha, desde que elas não contrariem os direitos humanos básicos. Mas caso você concorde, pelo menos um pouquinho com minhas iniciativas, deixo abaixo uma lista dos projetos que andei divulgando (e que ainda não atingiram suas metas de arrecadação). A maior parte deles aceita doações mínimas de R$10, mas se você está mesmo apertado, não custa ajudar com divulgação.


Cuidar da sua saúde mental não é nenhum crime. Você não precisa se sentir culpado ou culpada por isso. Apenas arregace as mangas para fazer o que sente que pode, lave as mãos e fique em casa.


(E se você realmente precisa sair a trabalho, mais uma vez: obrigada).


Na medida do possível, fique bem.


P.s.: também anexei abaixo um mapa das histórias que contei até hoje, caso alguém esteja se sentindo meio perdido. Sherazade abre histórias dentro de histórias, e isso pode acabar ficando bem confuso! Cada bloco cor-de-rosa tem um arco dramático diferente, então se você não pegou tudo do início e quer começar a acompanhar agora, comece em um deles. Os títulos são os nomes dos vídeos.

Projetos para apoiar na quarentena:

SUPERA-AÇÃO | COVID-19 - Meta: oferecer 5 mil testes ao sistema público de saúde.

Renda mínima pros catadores - Meta: ajudar os catadores a preservar a saúde e a renda durante a pandemia.

Arte contra o coronavírus - Meta: Conseguir 50 mil cestas básicas para famílias em situação de vulnerabilidade social.

Mães da favela - Meta: auxiliar financeiramente (com R$120/mês) milhares de mães que vivem em favelas.

Covid-19 Delivery Solidário - Meta: doar 3 mil marmitas nas comunidades carentes de Joinville.

Mapa das histórias contadas até o momento no canal do Recanto da Prosa:


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