O seu Paulo não fica na guarita da portaria. É um poeta, e poetas não nasceram para ficar enclausurados. Não é como o seu Rubens, esse sim fica ali sentado, observando as câmeras; e quando alguém passa, só se limita a dizer "dia", "tarde", "noite", como quem anuncia vagamente o passar das horas e não vê nada de especialmente bom na rotina. Gosto dele também, com seu ar meio blasé; me identifico com sua melancolia existencial.
É o oposto completo do seu Paulo. Na primeira vez que nos encontramos (eu estava chegando ao apartamento de um quarto alugado no interior de Minas), seu Paulo veio me receber no portão do condomínio e me ajudou com as malas, apesar das "cadeiras velhas". Queria saber meu nome completo, o que eu estava fazendo na cidade, o que gostava de ler, se eu sabia falar espanhol (essa última, ele me perguntou, de fato, em espanhol). Respondi “um pouco” e ele corrigiu minha falha: “poquito”. Depois, quando me pegou de saída para cobrir uma feira literária (afinal esse era o motivo da viagem), seu Paulo quis saber se eu falava inglês - mas perguntou em português mesmo, porque essa língua dos diabos ele não dominava. “Diferente demais da nossa, tem nada a ver com a gente”.
O tema da feira era a literatura hispânica. Seu Paulo ficou besta. Queria porque queria largar a portaria e ir no meu lugar. “Quer ficar aqui? Eu posso ser blogueiro. Tiro foto e tudo”. Dando risada, despediu-se com palavras que não entendi. “É hebraico”, explicou. Não quis traduzir. Achou graça em deixar "a doutora" sem saber.
No fim do dia, quando voltei para casa (vou chamar de casa, porque já tinha desfeito as malas, ocupado o armário e enchido a geladeira - faço casa em qualquer canto), seu Paulo já esperava ao lado do elevador. Ele havia me visto pelas câmeras de segurança e se adiantara para apertar o botão e segurar a porta aberta. Mas não me deixou subir tão depressa. Perguntou se eu conhecia a música "Aline", da dupla João Mineiro e Marciano.
Sou uma vergonha para minhas origens interioranas em matéria de conhecimentos relativos à música sertaneja, então respondi que não. Seu Paulo começou a cantar. Além de poeta, deve ser músico. Tem uma voz boa, é afinado. Reconheci uma versão da música francesa de Christophe: a canção que inspirou meu pai a escolher meu nome. Contei do meu pai; seu Paulo disse que ele devia ser um homem romântico.
Depois disso, passei a dar um tchauzinho para as câmeras dos corredores, sempre que deixava o apartamento e entrava no elevador (torcendo para não passar a vergonha de me deparar com o seu Rubens na saída, todo sisudo, ignorando sumariamente meus acenos sorridentes). Seu Paulo, obstinado a provar que o cavalheirismo não morreu, nunca decepcionou: abandonava a guarita por alguns instantes e corria para me receber cantando. Podia ouvi-lo antes das portas metálicas se abrirem: "E eu chamei, chamei/ Aline! Estou aqui/ E eu chorei, chorei/ Um mar só por ti".
De tudo o que vi durante a feira - e a concorrência foi acirrada - poucas me comoveram tanto quanto aquele homem de dentes amarelados e cadeiras velhas. Há poetas que não escrevem. Há poetas que vivem poeticamente, espalhando romance, música e votos em hebraico por aí. O mundo é mesmo uma caixinha de surpresas.
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