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RECANTO DA PROSA

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Rastros no escuro

Um relato de Carla Piazzi sobre o romance Luminol



O texto abaixo é de autoria da escritora Carla Piazzi e foi gentilmente concedido em resposta a uma entrevista cuja questão central diz respeito à relação entre vida e obra no romance Luminol, com foco no gênero diário (visto que este ocupa a maior parte do livro). Em resumo, as perguntas que fizemos à autora foram condensadas abaixo:


Ao longo da história, muitos escritores mantiveram o hábito da escrita de diários, paralelamente à produção de suas obras – sendo que alguns deles foram posteriormente expostos, causando controvérsias. Você tem esse hábito? E mais: por que e para quem se escreve um diário?


_____


Não. Já tentei várias vezes, mas descobri que a minha vida, ou melhor, meu cotidiano (o diário é meio que tecido por isso, né?) não me interessa muito. Para o romance, no entanto, a opção por um diário foi fundamental. Mas para falar do porquê de sua importância, preciso antes retomar alguns pontos de partida.


Agora, com alguma distância, aquela marcada pela publicação, sinto a necessidade desse gesto – o de olhar para trás, um gesto que é, inclusive, evocado reiteradamente nas três partes do romance. É como se o Luminol me dissesse: "agora é sua vez". Procurei nas minhas anotações antigas e caóticas se, por acaso, lá atrás, eu havia elaborado algo, se fui uma pessoa capaz de planejar exatamente o que faria, mas não encontrei nada, o que me confirma que, grosso modo, o meu processo foi o de uma frase pedindo por outra. Entretanto, isso não significa que eu não tinha uma motivação ou a clareza de um projeto. Eu queria escrever sobre a morte e o esquecimento da mãe. Algo sobre a falta. Da minha mãe.


Quando pensamos no esquecimento, não tem como isso não vir acompanhado da dúvida. Porque não é você que se lembra, são outras pessoas que iluminam passagens inteiras de sua vida. No meu caso, foi a infância. O fato de que muitos episódios da minha infância foram iluminados pelo relato de outras pessoas (e que, ao ouvi-los, eu mal podia me reconhecer) fez com que a dúvida fosse uma espécie de companheira da vida, quase um anjo da guarda. O esquecimento de minha mãe era o que mais me atormentava. Enquanto minha irmã contava casos inteiros, articulados, encadeados, vivíssimos, eu, se não tivesse alguns retratos e objetos herdados, mal poderia dizer: “eu tive/tenho uma mãe”. Me incomodava o fato de olhar suas fotografias e objetos como quem olha uma prateleira em um supermercado chinês, um supermercado fantasmagórico, isolado, sem ajudantes, quanta embalagem linda – e sair de lá com fome.


Mas não era só isso. Um olhar mais demorado me levava a uma espécie de desprezo por sua imagem, que vinha colada à ideia de rejeição e abandono. Como Maya, quando ela morreu, eu não fazia ideia do que era a morte. Como Maya, não vi o corpo, ninguém permitiu. Pra mim, ela somente desapareceu, me deixou. Nada do que eu tinha, do que eu conhecia como criança, poderia me explicar o porquê de um dia “sim” e no outro “nunca mais” – e esse sentimento ficou incrustado, como se fosse um broto com um amadurecimento muito próprio, lento, quase apartado da criança que fui. Incrível isso, mas é verdade. A morte, ela mesma, tema, enredo, personagem, o que for, espalhada e diluída por todas as histórias e bibliotecas, de todos os tempos – mas nunca menor. Eu queria falar da morte da mãe, mas eu não conseguia, brigava com a palavras, falar o quê? Eu não me lembro de você. Eu não tenho nada de você, memória é vida. Aos poucos, através de epifanias, sonhos, psicanálise e alguns episódios de minha vida, fui me dando conta do que tinha acontecido: ela morreu. Foi isso. Simples assim. Então o desprezo se transmutou em afeto, e uma culpa imensa (a culpa é um elemento dramático do romance) tomou conta de mim. Isso quer dizer que passei a me lembrar dela? De jeito nenhum. Mas agora seus retratos e objetos não eram mais negativos, atestados de ausência, eles começaram a me contar coisas.


Portanto, o que eu tinha? Uma falta e uma dúvida – que são, ao menos para mim, a semente da literatura e o seu adubo. Se a gente parar pra pensar, como agarrar a falta e a dúvida? O que fazer com esses materiais tão escorregadios, que, no limite, são um tipo de negativo, uma ausência? Eu sabia que só a escrita de um romance – e mais nada, absolutamente nada – poderia substituí-la, eu precisava preencher essas lacunas com a matéria da imaginação. Se você olha tanto para o que não existe mais, você acaba vendo.


Então, veio o título. Eu acho o luminol uma substância fascinante, ela revela o sangue, o rastro de uma vida, o material orgânico oculto, ela ilumina, mas a reação química só acontece a partir de uma determinada escuridão. A atmosfera do romance foi toda construída a partir de uma composição variável de luzes e sombras. Ao contrário do que a gente costuma fazer, o título não veio depois, ele foi um ponto de partida, o que deixou tudo bem mais difícil, mas foi bom mesmo assim, funcionou como uma obsessão, um norte para a criação, e eu preciso da obsessão para escrever. A narrativa ficcional surge então como uma forma de provocar a dúvida em vez de solucioná-la, no sentido de substituí-la pela certeza. Longe de buscar resolver qualquer coisa, o livro foi construído de modo que a dúvida da autora fosse a dúvida dos leitores, numa espécie de comunhão.


Maya, entretanto, precisava de mais coisas do que pude dar. Partíamos de um mesmo lugar, o lugar do esquecimento, do trauma, do borrão, das heranças, da busca pela ancestralidade, do fantasmático, mas ela precisou recolher mais coisas no caminho, e pude lhe dar algumas, mas não o suficiente. Minha vida não basta. Nunca bastou. Esse é o momento do nascimento do romance, da ficção: reposicionar os espelhos, fazer e desfazer o nó que nos une e nos separa. Maya é você? Sim e Não. Isso é o mais próximo que conheço dessa coisa/enigma/charada/ciranda que somos continuamente convidados a decifrar, chamada verdade – a grande verdade da ilusão, a magia incessante da aparição, por isso seu nome: Maya. Emanuele Trevi, em seu maravilhoso livro Duas vidas, evoca o conceito hindu de “maya”: é um espaço mental, uma projeção, uma magia poderosa, um atributo dos deuses. O mundo nos engana e nos faz crer em sua existência fora de nós – e o romancista também. Mas na realidade, o que parece se mover no exterior também se agita no interior de uma única consciência. Ilusão em si mesma, sua atividade não cessa de produzir ilusões.


A operação se duplica: uma autora precisa de outra e se intercalam na posição de hospedeiras e parasitas – porque uma hora a coisa acontece no corpo mesmo – contentes com a brincadeira de rememorar e reinventar. A cada espelhamento, algo novo é acrescentado, até que, lá adiante, não somos mais capazes de reconhecer a matriz. Intuo que a verdade deste romance esteja no “entre” essas duplicações/espelhamentos, o que justifica a escolha da personagem Quindim – a que tem o meu nome, a única que é capaz de reunir o que foi construído nessa autoria vertiginosa, nessas posições cambiantes de mãe-filha-mãe, a única capaz de apreender o “real” – para ocupar o lugar de quem borrifa o luminol. Ela é a leitora. Mas a leitura é também criação, e se a gente pensa em criação, não dá para descartar a autoria. O leitor participa disso no Luminol. A autora usa o que tem. Maya usa o que tem. Clara usa o que tem. Quindim usa o que tem. Maya, Clara e Quindim são três autoras que se movem na lucidez, mas também no sonambulismo. Sinto que são uma só subjetividade.


Além do título, um outro ponto de partida, aqui de natureza estrutural, foi a conclusão de que somente um diário daria conta do que eu queria. Agora, olhando para trás e tocando num ponto óbvio sobre a apreensão de uma realidade, de um pontapé inicial pra escrita do romance, penso: Tá. Tudo bem, você acha que a literatura pode aproximar nossa consciência do amor e da morte, os dois grandes esteios metafísicos, a substância da nossa existência; você quer explorar a potência do rememorar e reinventar; você quer falar de culpa, do esquecimento, do trauma, de criação, de amizade, de aprisionamento, de desespero, heranças, de uma realidade assombrada. Tá. Isso tudo é grandioso demais, inapreensível, pois está diluído na infinidade com a qual cada ser humano experimenta essas realidades – então como aproximar? Como dar carne e sangue a mãe e filha, “fantasmas uma pra outra”? De uma coisa, eu sabia: seria algo de fôlego.


Neste período, mergulhei na leitura de diários, esses resíduos textuais tão reveladores que ficam pelas gavetas – quem sabe procurando um tipo específico de intimidade? De companhia? De jorro? Vai saber… Nos diários pude sentir a solidão, o desespero, o desencanto, os desejos escancarados e subterrâneos daqueles que decidem manter uma escrita tão íntima. Sem freios e nem pudor (mas nem sempre) e de formas muito criativas, as questões fundamentais da nossa existência são colocadas insistentemente: de onde vim, para onde vou, de que trevas se originou a consciência, que grande absurdo tudo isso… que coisa mais sem sentido é a vida… Escrever um diário pode ser uma forma peculiar de dar importância e sentido à própria existência, de reter algo que, no fundo, sabemos inapreensível, e essa consciência trágica leva (pelo menos nos que mais me mobilizaram) a uma outra questão: o que faço no meio do caminho entre ir de uma insignificância à outra? Uns se decidem pela morte, outros pela criação. Nos diários vi diversos questionamentos (que me interessaram bastante) sobre esse tipo de escrita. Também me deparei com uma multiplicidade de vozes e de formas muito distintas de se aproximar desse caderninho, uma multiplicação de contradições e desentendimentos, além de um encontro escritor-leitor que me pareceu bastante sedutor. Às vezes, eu tinha a sensação de que aquele que escreve no diário – teoricamente a escrita mais secreta e íntima – se comportava como alguém que se sentia observado por um voyeur. Noutros casos, era evidente a comunicação com um leitor do futuro; e quando a escrita era mais narrativa, ela pedia por clareza. Espalhados pelas páginas, alguns jorros incompreensíveis, códigos. Ao ler diários, senti que eu estava participando de um encontro muito específico daquele que escreve com a vida. Um encontro repleto de aproximações, recuos, giros e convulsões, que me lembrava ora uma dança, ora um espasmo. De qualquer forma, vida pulsante, mas com o horizonte da morte sempre presente. Por isso achei que o diário teria a força de um documento (não importa se falso ou verdadeiro), que diz ao leitor que o que está ali é a comprovação de uma determinada realidade. Foi a parte mais difícil e demorada. Eu não conseguia avançar na escrita das entradas se não tivesse a sensação de que, naquele dia específico, o que deveria estar ali, estava. E isso poderia levar dias e dias. Um dia de Clara para não sei quantos meus. Dois calendários e dois relógios regidos por métricas distintas.


Para compreender as questões de tempo, espaço e atmosfera, e as singularidades estruturantes do diário de Clara, cabe falar brevemente sobre o tempo de escrita do Luminol. Entre interrupções, uns dez anos. Mas ele só ganhou impulso e corpo a partir da campanha de 2018, a tragédia. Eu não consegui dar conta daquilo. Perdi o horizonte e, ao pensar no presente e no futuro, só me vinha a destruição. Foi quando reuni a necessidade de uma moldura/andaime do Luminol àquilo que eu estava sentindo. Meu corpo foi atravessado pelas questões do meu tempo e eu quis dizer ao mundo aquilo que ele dizia a mim. Mas eu não queria falar do imediato, eu estava com repugnância do presente, de internet, de celular, do que via nos jornais – eu estava tão contaminada, tão indignada, que eu sentia que poderia escorregar para um tipo de “texto de recado” (mais voltado às respostas do que às perguntas) – e isso não me interessava como projeto literário. Eu queria que o Luminol fosse (também) um inventário de dúvidas, então senti a necessidade de relativa distância, um período irmanado, do qual eu, como autora, pudesse ouvir os ecos: a ditadura.


Nasci um ano depois do golpe e cresci sentindo um determinado “cheiro”. Senti por vinte anos. A gente não se livra dos cheiros. Para colocar os pés no chão e perseguir os rastros daquilo que então já era vago, distante, fui atrás de depoimentos, li os relatórios da Comissão da Verdade, a literatura especializada etc. No entanto, como tenho formação em história, fui muito cautelosa, pois eu sabia que corria o risco de fazer transbordar para o romance os rigores de minha formação, e não era isso o que eu queria. A ditadura, portanto, está representada no romance mais como um cheiro, um rastro, uma atmosfera, do que como um fato recheado de nomes, datas e acontecimentos norteados por uma temporalidade construída como uma flecha que parte do negativo em direção ao positivo (aqui estou me referindo ao senso comum do que seria a História). Da ditadura me interessava mais seu aspecto sufocante, destruidor da experiência, dos corpos, das forças vitais de conexão com o mundo e, principalmente, do que significa sobreviver nos escombros.


Então eu tinha a destruição de um projeto emancipador de futuro – e assim surgiu a ideia de um andaime: as três partes do diário. Duas obras me deram isso: A divina comédia e o Decameron. (Clara é uma jovem de vinte e poucos anos, formada em história e interessada pelo medievo.) Ao contrário de Dante, o percurso de Clara no exílio se inicia no paraíso, onde ela ainda vê alguma perspectiva de saída, passa pelo purgatório, o lugar da dúvida por excelência, e termina no inferno, quando ela sabe não ter saída. Cada um desses “lugares” está associado a determinadas emoções, atmosferas, acontecimentos e atividades. Além do paraíso, purgatório e inferno, outro componente deste andaime, inspirado nos 100 cantos da Divina Comédia, foi o número de entradas do diário: 100 entradas, os 100 anos do séc. XX. Aqui, Carla e Clara se fundem: Não mergulhei de cabeça no séc. XXI. Não encontrei nada, nenhuma tecnologia capaz de superar ou deixar para trás o terror das duas grandes guerras, o fascismo, o nazismo, as ditaduras e os massacres do séc. XX. Ainda me surpreendo com aviões, telefones, televisão. As 100 entradas do diário também são inspiradas nas 100 novelas do Decameron, mas aqui entra um outro componente do andaime: a Peste. Meu presente era a Peste (não falo só da pandemia), uma peste para a qual a ideia de vacina não era sequer cogitada. Necessariamente mortífera, pois só anunciava, como disse, a destruição. Do Decameron também vieram os 10 personagens do diário e os 10 dias da leitura feita pelas personagens Laura e Maya. Os números funcionaram aqui como organizadores para dar um amparo, mas apesar desse esqueleto aparentar clareza em relação aos limites da moldura, uma parte considerável foi sendo pensada, delimitada, erguida durante o processo da escrita.


A questão inicial, a de dar vida, leva necessariamente a outra: que vida? As lembranças de Maya são poucas e enevoadas, e ainda que por todo o texto a questão da inseparabilidade da memória como reinvenção e imaginação esteja presente, ela sente que tem muito pouco. Maya sabe que o que chegou a ela em termos de informação sobre Clara passou por muitos filtros e trocas de lentes. É quando os objetos, as heranças e o seu próprio entorno começam a lhe insinuar coisas – coisas que passa a reunir, num processo de colagem e justaposições (divisão, acréscimo, subtração), ora como a resolução de um quebra cabeças, ora como a criação de um. Daí o hibridismo e o detetivesco do romance.


Mas o Luminol não é detetivesco no sentido clássico: uma figura central que vai atrás da resolução de um crime ou uma questão que, no fim, é solucionada. No Luminol não existe essa figura central, não existe um crime, não existe solução; as narradoras são autoras que investigam umas as outras a partir de suas heranças, mas fundamentalmente, o detetive é o leitor. O que interessa pro Luminol é o procedimento investigativo, porque na sua estrutura, é um modo de agir que busca reconstituir e organizar a complexidade daquilo que está solto, desorganizado, perdido, esquecido. No limite, o que o detetive faz? Ele usa o que tem, olha para o que o cerca, ele conjectura, ele tenta. No caso do romance, o hibridismo das formas (narrativa, cartas, diários, ensaios) e também as colagens, duplicações e espelhamentos, funcionam como um aparato formal que busca dar conta dessa complexidade, não só do universo específico de cada personagem, mas também do contexto social, político e cultural de cada uma das partes do romance. O detetive-leitor busca então encaixar as peças. O romance foi pensado como um grande quebra-cabeça, mas é um quebra-cabeça estranho, ele não forma uma única paisagem. Ela muda a depender de como você lê. O leitor tem um papel fundamental: ele também é autor. Não há uma paisagem certa. Se você lê da primeira à última página, o romance é um. Se você lê indo e voltando, ele vai se revelando outro. E se você decide reler e escavar, outro romance surge.


Quanto à segunda parte de sua questão – “por que e para quem se escreve um diário?” – deixo aqui a reflexão inicial de Clara, quando ela decide que esse tipo de escrita é sua única forma de se sentir viva:


“Quero deixar registrado: estou aqui na fazenda há um tempo. Tinha me comprometido a manter um diário desde o primeiro dia. Foi uma de minhas estratégias (e foram tantas) pra enfim aceitar que eu não tinha saída, que só aqui encontraria a segurança, o isolamento e o respiro prometidos por Ana.


Sua insistência na minha cegueira e seus alertas sobre as ameaças que me encurralavam precisavam ser contrapostos à minha própria lista do terror. Me convenci de que se antes de escrever qualquer coisa aqui [neste diário], antes de falar do presente, eu olhasse pro passado, se a cada dia eu começasse a escrita pela lembrança dos meus motivos, como uma espécie de cabeçalho a ser repetido a cada página, isso iria, com o tempo, aliviar o peso das minhas escolhas. Eu precisaria me lembrar todos os dias do porquê de ter deixado a minha filha, do enterro de Alejandro, do desaparecimento de Júlio, das lápides concretas e das imaginárias, de como perdi emprego, casa, oficina, alunos, amigos. Uma espécie de registro heroico. Queria algo palpável em minhas mãos, mãos que vieram pra cá tão vazias. Eu queria ter algo até pra me arrepender depois, se for o caso.


Agora, ou escrevo ou morro. Preciso sentir o tempo passar, e ver uma pilha de papéis acumulada por mim pode me convencer de que sim, ele passa. Mas pra seguir adiante com isso, devo estabelecer um novo pacto com o meu diário: aquilo que eu imaginava ser a sua essência, ou seja, a intimidade perfumada por lembranças e justificativas, em vez de me nutrir, me manter viva e capaz de pensar com clareza e de acreditar no futuro, vai me esfacelar, vai me atirar na estrada, e eu não tenho pra onde ir. As memórias vão me dizer: Clara, você não pode viver aqui, não pode viver lá, e não pode morrer. Portanto, não escreverei sobre minha filha. Ainda que eu taque fogo nos papéis, a fumaça da escrita se agrupará novamente numa substância cuja dureza não sou capaz de enfrentar. A saudade e a culpa vão me matar, eu sei disso. E ela precisa de mim viva. Maya, meu amor, você ajuda a mamãe a fazer isso? (...)


Falando assim, parece que me dispus a fazer algo por obrigação, por ser grata por me abrigarem, mas o que me interessa mesmo é só a minha experiência, a minha urgência. Não é verdade. É que ter encontrado uma função num lugar onde nunca imaginei parar, escondida, mutilada, morando com estranhos, amenizou um pouco, ou assim espero, a recusa melancólica em olhar pra minha vida, pro que tive de fazer. Mas pra quem estou escrevendo quando digo “falando assim”? Eu nunca tive um diário, sempre achei uma violência publicar esses caderninhos tão íntimos depois da morte de alguém. Não nego que os diários acessam profundezas, algo que o autor nem sabia que tinha (e claro, passa a ter), mas, agora que é comigo, gostaria que meu diário fosse deixado em paz, apodrecendo, sem espetáculo, sem autópsia, sem colagem, remendo ou conjecturas, em algum fundo de gaveta. Eu devia fazer um testamento, mas sei que não vai adiantar. Todo desejo, um dia, perde a validade. Seu desejo só dura um pouco mais que você, só́ enquanto for uma assombração pra alguém. Se perguntassem pro vivo, posso ler o seu diário? Pela minha régua, acho que a maioria diria: Nunca.


Então, a não ser que você escreva como um vômito a ser limpo sem deixar vestígios, ou seja, escreve-apaga (e pela minha régua, ninguém faz isso), você escreve pra alguém. Escrever pra mim e só pra mim é, portanto, uma falácia. Isso é um tanto trágico, porque, de um jeito ou de outro, aquilo que pretendia ser íntimo e espontâneo pode ser orientado, em alguma medida, pela vergonha, pela vaidade e até pelo instinto de sobrevivência. São forças controladoras penduradas em nossos ombros sussurrando o tempo todo: mostre-se, faça algo, qualquer coisa pra alguém atestar sua existência. Que vocêvive, mesmo depois de morta. Pra seguir adiante e me sentir livre, preciso me convencer de que a leitora deste diário serei eu, que a morte não virá sem aviso, que eu terei tempo e estarei lúcida pra editar, ou mesmo queimar, os meus textos feitos de dias.


Clara, não é bom começar um diário nesse embrolho.”

_____



Clique aqui para saber mais sobre o Luminol no site da editora Incompleta.






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